martes, junio 12, 2012

Fernando Pessoa - [Carta a José Osório de Oliveira - 1932]


[Carta a José Osório de Oliveira - 1932]
Recebi, há cinco minutos, a sua pergunta: «Quais foram os livros que o banharam numa mais intensa atmosfera de energia moral, de generosidade, de grandeza de alma, de idealismo?» Respondo, como vê, imediatamente. Diz-me que é uma pergunta feita por António Sérgio, a quem não conheço pessoa1mente, mas por quem tenho a maior consideração. É mais uma razão para responder depressa; não é, infelizmente, uma razão para poder ser lúcido ou explícito, visto que se trata de um assunto em que, até agora, nunca reflecti.
Como, porém, em todas as dificuldades da vida se deve sempre agir antes de pensar, vou responder antes de saber o que digo, e a resposta terá assim o selo régio da sinceridade.
Ponho uma questão prévia. Os termos da pergunta pressupõem que a energia moral, a generosidade, a grandeza de alma e o idealismo sejam pessoas abstractas do meu convívio quotidiano. Infeliz, ou felizmente, não o são. Não digo que as não conheça, mas não as conheço com aquela intimidade com que conheço o capricho, a insinceridade e o devaneio — por vezes, até o devaneio lógico, que tem sido uma das minhas principais exterioridades .
Traduzo, pois, a pergunta para o seguinte: quais foram os livros que mais me transmudaram em mim mesmo para aquela pessoa diferente que todos nós desejamos ser? Para isto tenho uma resposta-aquela, imediata e impensada, a que acima me refiro, e que deve conter a verdadeira.
Em minha infância e primeira adolescência houve para mirn, que vivia e era educado em terras inglesas, um livro supremo e envolvente — os «Pickwick Papers», de Dickens; ainda hoje, e por isso, o leio e releio como se não fizesse mais que 1embrar
Em minha segunda adolescência dominaram meu espírito Shakespeare e Milton, assim como, acessoriamente, aqueles poetas românticos ingleses que são sombras irregulares deles; entre estes foi talvez Shelley aquele com cuja inspiração mais convivi.
No que posso chamar a minha terceira adolescência, passada aqui em Lisboa, vivi na atmosfera dos filósofos gregos e alemães, assim como na dos decadentes franceses, cuja acção me foi subitamente varrida do espírito pela ginástica sueca e pela leitura da «Dégénérescence», de Nordau.
Depois disto, todo o livro que leio, seja de prosa ou de verso, de pensamento ou de emoção, seja um estudo sobre a quarta dimensão ou um romance policial, é, no momento em que o leio, a única coisa que tenho lido. Todos eles têm uma suprema importância que passa no dia seguinte.
Esta resposta é absolutamente sincera. Se há nela, aparentemente, qualquer coisa de paradoxo, o paradoxo não é meu: sou eu.
                Fernando Pessoa


[Em: Textos de Crítica e de Intervenção. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980. 
 - 189. 1ª publicação em “Diário de Lisboa”, Maio de 1936.]
[Carta a José Osório de Oliveira - 1932]

        Recibí, hace cinco minutos, su pregunta: «¿Cuáles fueron los libros que lo bañaron en una atmósfera más intensa de energía moral, de generosidad, de grandeza de alma, de idealismo?» Y respondo, como ve, inmediatamente. Me dice usted que es una pregunta hecha pr António Sérgio, a quien no conozco personalmente, pero por quien tengo la mayor consideración. Es esa una razón más para contestar pronto; no es, infelizmente, una razón para poder ser lúcido o explícito, dado que se trata de un asunto en el que, hasta ahora, nunca había reflexionado.
        Sin embargo, como en todas las dificultades de la vida se debe siempre actuar antes de pensar, responderé antes de saber lo que digo, y la respuesta tendrá así el sello real de la sinceridad.
        Expongo una pregunta previa. Los términos de la pregunta presuponen que la energía moral, la generosidad, la grandeza de alma y el idealismo sean personas abstractas de mi convivencia cotidiana. Infeliz, o felizmente, no lo son. No digo que no las conozca, pero no las conozco con aquella intimidad con que conozco al capricho, a la insinceridad y al devaneo —en ocasiones, incluso, hasta el devaneo lógico que ha sido una de mis principales exterioridades—.
        Traduzco, entonces, la pregunta como la siguiente: ¿Cuáles fueron los libros que más me transmutaron en mí mismo hacia aquella persona diferente que todos deseamos ser? Para esto tengo una respuesta-aquella, inmediata e impensada, a la que me refiero antes, y que debe contener la verdadera. 
        En mi infancia y en mi primera adolescencia tuve para mí, que vivía y era educado en tierras inglesas, un libro supremo y envolvente, los "Pickwick Papers", de Dickens; que aún hoy, y por eso mismo, leo y releo como si no hiciese más que recordar.
        En mi segunda adolescencia dominaron mi espíritu Shakespeare y Milton, así como, accesoriamente, aquellos poetas románticos ingleses que son sombras irregulares de ellos y, entre estos, fue tal vez Shelley aquel con cuya inspiración más conviví.
        En lo que puedo llamar mi tercera adolescencia, aquí en Lisboa, viví en la atmósfera de los filósofos griegos y alemanes, así como en la de los decadentes franceses, cuyo influjo me fue súbitamente barrido del espíritu por la gimnasia sueca y por la lectura de la "Dégénerescence", de Nordau.
        Después de esto, todo libro que leo, sea de prosa o verso, de pensamiento o de emoción, sea un estudio sobre la cuarta dimensión o una novela policial es, en el momento en que lo leo, la única cosa que he leído. Y todos ellos tienen una importancia suprema que desaparece al día siguiente.
        Esta respuesta es absolutamente sincera. Si hay en ella, aparentemente, algún tipo de paradoja, la paradoja no es mía: soy yo.

                                Fernando Pessoa








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